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segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Já na literatura nem tudo mudou... Ainda bem!!

Livros  Rio, 20 de novembro de 1889



Após quatro meses de silêncio, Machado de Assis volta a publicar os folhetins de Quincas Borba


Biblioteca Nacional

O escritor: galhofa e melancolia



Festejai, republicanos de todo o país – vá lá, monarquistas também. No final deste mês, o suplemento literário da revista feminina A Estação traz de volta os folhetins de Quincas Borba, de Joaquim Maria Machado de Assis. Já não era sem tempo. Iniciado em junho de 1886, Quincas Borba desapareceu subitamente das páginas de A Estação há quatro meses, nas quais muitas vezes era publicado ao lado de anúncios de moda. Os leitores decerto estarão curiosos por saber o destino que a pena ora galhofeira, ora melancólica de Machado reservou àquelas personagens que circulam pela Corte carioca de trinta anos atrás, quando se passa a história. O Brasil então travava uma guerra com o Paraguai do marechal Solano López. O imperador Pedro II impunha o veterano conservador Visconde de Itaboraí como presidente do Conselho a uma Câmara de Deputados dominada pelos liberais, episódio do qual surgiria o Partido Republicano. E a escravidão ingressava em seus capítulos derradeiros com a assinatura da Lei do Ventre Livre.

Tudo isso se sabe. O que se desconhece é o que virá em Quincas Borba, vencida a crise de inspiração que se abateu sobre seu autor. Terá sucesso Rubião, o mineiro pé–de–chinelo que subitamente se converteu em capitalista graças à herança de um amigo lunático, em sua corte adúltera à bela Sofia? Guasca perturbadora, Sofia é capaz de enlouquecer o mais são dos homens. "Era daquela casta de mulheres que o tempo, como um escultor vagaroso, não acaba logo, e vai polindo ao passar dos longos dias", escreveu Machado. Sofia, na parte publicada do romance, está casada com Cristiano Palha, um tipo extraordinariamente ambicioso que conheceu Rubião quando este viajava num trem de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, já montado numa fortuna de muitos e muitos contos. Palha insinuou–se na amizade de Rubião e acabou por tomar–se seu sócio numa dessas casas de importação que proliferam no Rio nesta segunda metade de século XIX.

Em 1883, ao comentar o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, um marco na obra de Machado de Assis, o crítico Araripe Júnior, primo de José de Alencar, estampou sua perplexidade. "É o livro mais esquisito que se tem publicado em língua portuguesa", afirmou Araripe. Outro famoso literato, Capistrano de Abreu, perguntou se era um romance. Eram compreensíveis estas considerações. Ou alguém já vira antes um defunto autor, ou autor defunto, ele mesmo, Brás Cubas? Mesmo um capítulo sem uma única palavra aparecia no Memórias Póstumas. Até a interrupção de julho passado, já haviam sido escritos 105 capítulos de Quincas Borba, páginas suficientes para perceber que, em questão de esquisitices, ambos os romances se equivalem.

Primeiro que tudo, quem é mesmo o Quincas Borba que dá nome à história? Bem, talvez fosse melhor perguntar quais são, uma vez que não se trata de um, mas de dois Quincas Borba. O primeiro é um filósofo maluco, o amigo que legou a fortuna a Rubião, autor de uma teoria intitulada "Humanitas", segundo a qual a guerra constrói e a paz destrói.Tentemos desvendá–Ia. Suponhamos duas tribos em um campo de batatas. As batatas são bastantes para saciar a fome de apenas uma das tribos. Se houver paz, ambas perecerão de inanição. Na guerra, uma sobreviverá. O filósofo não era exatamente conciso. Se o fosse, poderia resumir "Humanitas" numa frase: ao vencedor, as batatas. Quincas Borba já aparecera antes no Memórias Póstumas, filosofando extravagâncias e batendo a carteira de Brás Cubas.

Existe, assim, um elo evidente entre os dois romances. Mas se o primeiro Quincas Borba surge agora apenas para morrer e enriquecer Rubião, o segundo vem acompanhando–o todos os dias. Não fala, gane. É o cachorro do filósofo, "algo peludo e cor de café", a quem o dono deu seu nome. "Se eu morrer antes, como presumo, sobreviverei no nome de meu bom cachorro", justificou Quincas Borba a Rubião. Entre Rubião e o legado do criador de "Humanitas", erguia–se apenas uma condição: que cuidasse do cão com o mesmo carinho que dedicaria ao amigo que morrera. Tudo muito esquisito.

No capítulo trinta de Quincas Borba, Machado de Assis coloca–se na pele do leitor e faz um comentário revelador. "Arrenego de um autor que me diz tudo, que me não deixa colaborar no livro, com a minha própria imaginação", afirma. "A melhor página não é só a que se relê, é também a que a gente completa de si para si. "Não, ele não poderia perder uma oportunidade de dar mais um piparote nos devotos da escola realista, que têm no francês Emile ZoIa seu nome mais vistoso. A Machado repugna essa escola, com sua obsessão por mostrar a realidade tal como é, em seus menores detalhes, "com exação de inventário". Ele assestara já uma memorável pancada nos realistas ao fazer a crítica de O Primo Basílio, do português Eça de Queiroz, seguidor de Zola. "A nova poética só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato de fios de que compõe um lenço de cambraia ou um esfregão da cozinha", esporeava então, Machado. Em que escola enquadrá–Io? Difícil. Aos derramamentos verbais dos românticos e à submissão dos parnasianos à forma, ele opõe a simplicidade. Talvez daqui a mais de um século os literatos ainda discutam a que escola pertence Machado de Assis.

Aos 50 anos de idade, o escritor desfruta sólida reputação. Desde 1883, uma biblioteca pública em ltajubá leva seu nome. "Chefe consagrado dos nossos literatos", "o primeiro de todos", "o único", reverenciam–no escritores como Raul Pompéia, Raimundo Correia e Olavo Bilac. Se fosse criada no Brasil uma academia de letras nos moldes da francesa, seria um poderoso candidato à presidência. Machado de Assis dificilmente terá sido o brasileiro mais feliz com o advento da República, assim como não compartilhara o entusiasmo dos abolicionistas em 13 de maio do ano passado. Não que seja um monarquista fanático, longe disso. É que, como escreveu numa crônica recente, desconfia que, atrás dos arroubos dos progressistas, escondem–se aproveitadores interessados em transformar a República recém–nascida numa "anarquia social, mental, moral, não sei mais qual".

Que não tem os políticos em alta conta é notório. Os políticos em suas obras são nulidades pomposas. Uma dessas nulidades aparece justamente em Quincas Borba. Chama–se Camacho e faz, a certa altura, um desabafo lapidar. "Isso de política é como a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo", lamenta–se Camacho. "Não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende." De mais a mais, é inegável que o Segundo Reinado foi benfazejo a Machado de Assis, que vem de uma família humilde. Propiciou–lhe uma excelente carreira como funcionário público. Faz poucos meses, foi nomeado diretor do Ministério da Agricultura, com um salário de 8 contos anuais. Parece que pensava em comprar finalmente uma casa. Aquela em que ele e a mulher, Carolina, moram, no número 18 da Rua Cosme Velho, é alugada à condessa de São Mamede. Mas, provavelmente, agora se pergunta o que a República reservará para um alto funcionário da Monarquia como ele.

Seus cabelos estão embranquecendo, e ele passou a usá–los curtos, com uma barba que se prolonga em suíças até as orelhas. Gosta de jogar xadrez, voltarete e gamão. Levanta–se cedo e vai ao jardim ver as rosas, as murtas e as borboletas. "Tenho particular amor às borboletas", afirma. Depois, escreve. Trabalha no ministério após o almoço. Tem sempre, nos passeios pelo jardim, a companhia de Carolina. Conheceu–a no começo de 1867, irmã do poeta satírico português Faustino Xavier de Novais, que se fixara anos antes no Rio e fizera amizade com Machado de Assis. Morta a mãe, Novais mandara buscar Carolina em Portugal. Ao desembarcar no Brasil, Carolina andava pelos 32 anos e, se não era a mais formosa das lusitanas, tinha outras virtudes que capturaram a atenção do escritor. Em Portugal, polira–se na juventude na presença de intelectuais como Camilo Castelo Branco, que freqüentavam a casa de seus pais. "Talvez um anjo emudece quando ela fala", celebrou seu enamorado brasileiro numa poesia.

Os dois tiveram que superar resistências na família da noiva para casar, em 12 de novembro de 1869. O currículo extralivro do noivo não impressionou os Novais: mulato, filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira, gago e epiléptico. Carolina, com seu português castiço, é quem vela pela ortografia sujeita a tropeços do autodidata que tomou por marido. É ela, também, quem mantém à mão, discretamente, a solução La Royenne, o antiepiléptico usado por Machado de Assis. Talvez Carolina o tenha ensinado, de resto, a lidar com gente inoportuna. Numa festa, há pouco tempo, uma senhora trocou meia dúzia de palavras com Machado e comentou: "Tinham me dito que o senhor é gago e vejo que não é tanto". Replicou ele: "Pois tinham–me dito que a senhora era estúpida e vejo também que não é tanto".

Louvem–na ou apedrejem–na, a pena de Machado de Assis é, sem dúvida, versátil. Poesia, romance, conto, crônica, crítica, teatro – a todos os gêneros vem ele dedicando–se. Lá se vão 25 anos desde o lançamento de seu primeiro livro, a coletânea de poemas Crisálidas, de 1864. Vieram depois peças de teatro, volumes de contos, como Histórias da Meia–Noite, e romances, como Ressurreição, Iaiá Garcia e Memórias Póstumas. Memórias Póstumas, aliás, de 1881, é um caso à parte. É diferente de tudo quanto escrevera antes, páginas preenchidas "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". Como pudera um só autor escrever Iaiá Garcia e Memórias Póstumas? "É que eu perdi todas as esperanças nos homens", disse certa vez Machado. Neste momento em que o público está prestes a reencontrar–se com as peripécias de Quincas Borba, talvez valha uma analogia entre criatura e criador. Ou, mais especificamente, entre a bela Sopita e Machado de Assis. Ao modo de Sofia, ele pertence àquela casta de escritores que o tempo, como um escultor vagaroso, não acaba logo, e vai polindo ao passar dos longos dias.

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